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Bichos Page 5
Bichos Read online
Page 5
Transidos, nem o Pai nem a Mãe diziam nada. Deixavam, apavorados, mudos, que o pequeno chegasse ao cimo, à crista, e pusesse os olhos inocentes no ovo pintado. O ninho tinha só um ovo.
Aqui, o menino fez parar o coração dos pais. Inteiramente esquecido da altura a que estava, procedera como se viver ali, perto do céu, fosse viver na terra, sem precisão dos braços cautelosos agarrados a nada. E ambos viram num relance o pequeno rolar, cair do alto, da ponta do cedro, no chão duro e mortal de Nazaré.
Mas a criança, apesar de mostrar, sem querer, que de todo se alheara do abismo sobre que pairava, não caiu. Acontecera outra coisa. Depois de pegar no ovo, de contente, dera-lhe um beijo. E, ao simples calor da sua boca, a casca estalara ao meio e nascera lá de dentro um pintassilgo depenadinho.
E o menino contava esta maravilha com a sua inocência costumada, como quando repetia a história de José do Egipto, que ouvira ler a um vizinho.
Por fim, pôs amorosamente o passarinho entre a penugem da cama, e desceu. E agora, um nada comprometido, mas cheio da sua felicidade, sabia um ninho.
A ceia acabou num silêncio carregado. Só depois, à volta do lume quente do cepo de oliveira em brasido, é que os pais disseram um ao outro algumas palavras enigmáticas, que o pequeno não entendeu. Mas para quê entender palavras assim? Queria era guardar dentro de si a imagem daquele passarinho depenado e pequenino. Isso, e ao mesmo tempo olhar cheio de deslumbramento os dedos da Mãe, que, alvos de neve, fiavam linho.
E tanto se encheu da imagem do pintassilgo, tanto olhou a roca, o fuso, e aqueles dedos destros e maravilhosos, que daí a pouco deixou cair a cabeça tonta de sono no regaço virgem da Mãe.
CEGA-REGA
É difícil. Isto de começar num montouro e só parar na crista dum castanheiro, tem que se lhe diga. É preciso percorrer um longo caminho. Embrião, larva, crisálida… Todas as estações do íngreme calvário da organização. Animada pelo sopro da vida, a matéria necessita do calor dum ventre. Antes dessa íntima comunhão, desse limbo purificador, não poderá ter forma definitiva. Custa. Mas a lei natural é inexorável. Exije consciência de cosmos antes da consciência de ser. O calor dá no ovo. Aquece-o e amadurece-o. A casca quebra. Depois… Ah, depois é essa descida ao húmus, essa existência amorfa, nem germe, nem bicho, nem coisa configurada. Largos dias assim. Até que finalmente em cada esperança de perna nasce uma perna, e cada ânsia de claridade é premiada com dois olhos iluminados. Cresce também uma boca onde a fome a reclama, e surgem as asas que o sonho deseja…
É difícil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de nós, tudo se consegue. Até fazer parte do coro universal.
— Já hoje ouvi a cigarra…
— É tempo dela.
Nenhuma palavra de apreço pela dureza do caminho andado. Paciência. O teatro do mundo tem palco e bastidores. As palmas da plateia festejam sòmente os dramas encenados. Que remédio, pois, senão a gente resignar-se e acitar as sínteses levianas. Nascia do tempo. Muito bem. Ninguém mais ficaria a conhecer a fundura dos abismos em que se debatera. Protoplasma, lagarta, ninfa… Quase que sentia ainda no corpo as fases da transfiguração. Mas pronto, chegara! Agora era receber o calor do presente, e cantar. Cantar o milagre da anodina e conseguida ascensão.
E cantava.
A primavera estava no fim, e o estio ia começar. As cerejas pontuavam a veiga de sorrisos vermelhos. As searas, gradas de generosidade, aloiravam. Contentes, os ramos relaxavam de vez os músculos crispados, já esquecidos das ventanias do inverno. Havia penugens de esperança em cada ninho. Mas não era a doçura das seivas, a paz vegetal ou animal que saudava. Vencera todos os obstáculos dum árido caminho, sem a ajuda de ninguém. No fim do esforço, nem sequer essa vitória via reconhecida. Por isso, nada devia aos outros, e nada lhes daria, a não ser a beleza daquele hino gratuito.
Ainda no rés-do-chão das metamorfoses, apetecera-lhe contemplar dum alto miradoiro o berço nativo. E começou a subir, a subir, a subir sempre. Depois, serenamente, olhou. Nesse momento, porém, um raio quente de sol caiu-lhe amorosamente sobre o dorso. Contraiu-se de volúpia. E, da plenitude que a empolgou, ergueu-se a voz de triunfo. Não era a vontade que a fazia vibrar. Era o corpo, possesso de contentamento, que, num espasmo total, estridente glorificava a própria perfeição atingida.
— Até azamboa a gente!
O senhor camponês, a reclamar. Suado e soturno, a mourejar de manhã à noite, queria silência à volta. Tapasse os ouvidos! Nenhuma força humana ou desumana a faria calar. Com que razão? Porquê?
Porque a fome era triste, os dias passavam velozes, e urgia ajudar a natureza a ser pródiga? Imaginem!
Pois que aproveitasse as horas, os minutos e os segundos, num anseio insaciável de fartura. Ela continuaria ali, preguiçosa, imprevidente, num desafio sonoro à sensatez.
— Muita alegria tem tal bicho!
— A alegria passa-lhe… É deixar vir o inverno…
A pressurosa formiga! A coitada! Como se trabalhar fosse um destino!
— E temo-lo aí, não tarda muito.
Evidentemente. Mas que lhe importava? A escolha estava feita. Que as folhas do calendário, como as das árvores, fossem caindo, e que os ceifeiros lançassem as gadanhas ao trigo maduro, numa condenação de galerianos. Que nas tulhas se acumulassem toneladas de grão. Ao lado dos celeiros atestados, ficaria um celeiro vazio. Um símbolo de inquebrantável confiança.
— Mas em quê? — perguntava um pardal suspicaz.
Outro que não compreendia. Outro que só concebia a existência a saltar de migalha em migalha.
— Chega-lhe, Cega-Rega!
O Poeta! Louvado seja Deus! Até que enfim lhe aparecia um irmão!… Um irmão que sabia também que cantar era acreditar na vida e vencer a morte.
A morte que a espreitava já, com os olhos frios do Outubro…
LADINO
Grande bicho, aquele Ladino, o pardal! Tão manhoso, em toda a freguesia, só o padre Gonçalo. Do seu tempo, já todos tinham andado. O piolho, o frio e o costelo não poupavam ninguém. Salvo-seja ele, Ladino.
Mas como havia de lhe dar o lampo, se aquilo era uma cautela, um rigor!… E logo de pequenino. Matulão, homem feito, e quem é que o fazia largar o ninho?! Uma semana inteira em luta com a família. Erguia o gargalo, olhava, olhava, e — é o atiras dali abaixo!… A mãe, coitada, bem o entusiasmava. A ver se o convencia, punha-se a fazer folestrias à volta. E falava na coragem dos irmãos, uns heróis! Bom proveito! Ele é que não queria saber de cantigas. Ninguém lhe podia garantir que as asas o aguentassem. É que, francamente, não se tratava de brincadeira nenhuma! Uma altura! Até a vista se lhe escurecia… O pai, danado, só argumentava às bicadas, a picá-lo como se pica um boi. Pois sim! Ganhava muito com isso. Não saía, nem por um decreto. E, de olho pisco, ali ficava no quente o dia inteiro, a dormitar. Pobre de quem tinha de lho meter no bico…
Contudo, um dia lá se resolveu. Uma pessoa não se aguenta a papas toda a vida. Mas não queiram saber… Quase que foi preciso um paraquedas.
Mais tarde, quando recordava a cena, ainda se ria. E deliciava-se a descrever as emoções que sentira. Arrepios, palpitações, tonturas, o rabinho tefe-tefe. E a ver as coisas baças, desfocadas. Agoniado de todo! Valera-lhe a santa da mãe, que Deus haja.
— Abre as asas, rapaz, não tenhas medo! Força! De uma vez!
Tinha de ser. Fechou os olhos, alargou os braços, e atirou o corpo, num repelão… Com mil diabos, parecia que o coração lhe saía pelos pés! Ar, então, viste-o.
Deu às barbatanas, aflito.
— Mãe!
Mas afinal não caía, nem o ar lhe faltava, nem coisíssima nenhuma. Ia descendo como uma pena, graças aos amortecedores. Mais que fosse! No peito, uma frescura fina, gostosa… Não há dúvida: voar era realmente agradável! E que bonito o mundo, em baixo! Tudo a sorrir, claro e acolhedor…
A mãe, sempre vigilante e mestra no ofício, aconselhou-lhe então um bonito antes de aterrar. Dar quatro remadas fundas, em cheio, e, depois, aproveitar o balanço com o corpo em folha morta, ao sabo
r da aragem…
Assim fez. Os lambões dos irmãos nem repararam, brutos como animais! A mãe é que disse sim senhor, com um sorriso dos dela…
E pousou. Muito ao de leve, delicadamente, pousou no meio daquela matulagem toda, que se desunhava ao redor duma meda de centeio.
Terra! Pisava-a pela primeira vez! Qualquer coisa de mais áspero do que o veludo do ninho, mas também quente e segura. Deu alguns passos ao acaso, a tirar das cócegas nos dedos um prazer de que ainda tinha saudades. Depois, comeu. Comeu com fome e com gula os grãos duros que o sol esbagoava das espigas cheias. Numa bicada imprecisa, precipitada, foi a ver, engolira uma pedra. Não lhe fez mal nenhum. Pelo contrário. Ricos tempos! Desde o entendimento ao estômago, estava tudo inocente, puro. Fosse agora, e era indigestão pela certa. Arrombadinho de todo! Por isso fazia aquela dieta rigorosa…
Falava assim, e ria-se, o maroto. Nem pejo tinha da mocidade, que o ouvia deslumbrada.
— A vergonha é a mãe de todos os vícios, — costumava dizer.
E tanto fazia a Ti Maria do Carmo pôr espantalho no painço, como não. Ladino, desde que não lhe acenassem com convite para arrotada numa panela, aos saltinhos ia enchendo a barriga. Depois, punha-se no fio do correio a ver jogar o fito, como quem fuma um cigarro. Desmancha-prazeres, o filho da professora aproximava-se a assobiar… Ah, mas isso é que não. Brincadeiras com fisgas, santa paciência. Ala! Dava corda ao motor, e ó pernas! Numa salve-rainha, estava no Ribeiro de Anta. Aí, ao menos, ninguém o afligia. Podia fartar-se em paz de sol e grainha.
— Que mais quer um homem?!
— O compadre lá sabe…
— Bem… Tudo é preciso… São necessidades da natureza… Desde que não se abuse…
E continuava, muito santanário, a catar o piolho. Depois, metia-se no banho.
— Rica areia tem aqui o cantoneiro, sim senhor!
D. Micas concordava. E só as Trindades o traziam ao beiral da Casa Grande.
Adormecia, então. E a sono solto, como um justo que era, passava a noite. Acordava de madrugada, quando a manhã rompia ao sinal de Tenório, o galo. Isto, no tempo quente. Porque no frio, caramba!, ou usava duma táctica lá sua, ou morria gelado. Aquelas noites da Campeã, no janeiro, só pedras é que podiam aguentá-las. E chegava-se à chaminé. Com o bafo do fogão sempre a coisa fiava de outra maneira.
Ah, lá defender-se, sabia! A experiência para alguma coisa lhe havia de servir. Se via o caso mal parado, até durante o dia punha o corpo no seguro. Bastava o vento soprar da serra. Largava a comedoria, e — forro da cozinha! Não havia outro remédio. Tudo menos uma pneumonia!
A classe tinha realmente um grande inimigo — o inverno. Mal o Dezembro começava, só se ouviam lamúrias.
— Isto é que vai um ano, Ti Ladino!
A Cacilda, com filhos serôdios, e à rasca para os criar.
— Uma calamidade, realmente. Mas vocês não tomam juízo! É cada ninhada, que parecem ratas!
— O destino quer assim…
Lérias, mulher! O destino fazemo-lo nós…
Solteirão impenitente, tinha, no capítulo de saias, uma crónica de pôr os cabelos em pé. Tudo lhe servia. Novas, velhas, casadas ou solteiras. Mas, quando aparecia geração, os outros é que eram sempre os pais da criança.
— Se todos fizessem como eu…
— Ora, como vossemecê!… Cala-te, boca. Mudemos de conversa, que é melhor… Segue-se que não sei como lhes hei-de matar a fome… — gemia a desgraçada.
— Calculo a aflição que deve ser…
E o farsante quase que chorava também. Quisesse ele, e a infeliz resolvia num abrir e fechar de olhos a crise que a apavorava. Pois sim! Olha lá que o safado ensinasse como se ia ao galinheiro comer os restos!… Enchia primeiro o papo e, depois, a palitar os dentes, fazia coro com a pobreza.
— É o diabo… Este mundo está mal organizado…
Um monumento! Como ele, só mesmo o padre Gonçalo. Quanto maior era a miséria, mais anediado andava.
— Aquilo é que tem um peito! Numas brasas, com uma pitada de sal…
Mas já Ladino ia na ponta da unha. Não queria quebrar os dentes de ninguém. Carne encoirada, durásia…
E acrescentava:
— Isto, se uma pessoa se descuida, quando vai a dar conta está feita em torresmos. Que tempos!
O mais engraçado é que já falava assim há muitos anos, com um sebo sobre as costelas, que nem cabrito desmamado.
De tal maneira, que o Papo Magro, farto daquela velhice e daquelas manhas, a certa altura não pôde mais, e até foi malcriado.
— Quando é esse funeral, ti Ladino?
Mas o velho raposão, em vez de se dar por achado, respondeu muito a sério, como se fizesse um exame de consciência
— Olha, rapaz, se queres que te fale com toda a franqueza, só quando acabar o milho em Trás-os-Montes.
RAMIRO
— Deus nos dê muito bons dias!
— Han…
Quem passava até mudava de cor. Fazia-se-lhe a alma pequena só de ouvir em tal ermo uma resposta assim. É que metia medo!
Felizmente que não se tratava de ladrão. Ramiro, depois daquela salvação dada por entre os dentes, deixava-se ficar quieto, bambo, apoiado na foice roçadoira, com os olhos baços parados sobre a brancura do rebanho. Ramiro era pastor.
Aos domingos, no adro da Igreja, o Manuel Petinhas, que tinha o coração na boca, mais de uma vez lhe foi à mão.
— A modos que te custam dinheiro as palavras!…
Mas Ramiro, depois de cada remoque, continuava catado, e calado ouvia o padre João rezar missa. No fim, se havia ladainha, não respondia; se do altar vinha ordem para os homens cantarem no Tantum Ergo, não cantava.
A alma enchera-se-lhe de silêncio em vinte anos de Marão. Naquela grande aridez, só a vida que pulsava sem ruído conseguia triunfar. A chamiça, a carqueja, o tojo molar, as lagartixas, as cobras e os saltaricos cresciam no mesmo cauteloso mutismo. No Março, a torga floria. Mas não chegava esse alarido de cor para acordar as fragas. E a lição que Ramiro recebia diàriamente era a de uma irremediável afonia cósmica, de vez em quando quebrada pelo balido monossilábico dum cordeiro que se ficava esquecido a olhar um seixo, ou pelos uivos do Rilha que, pressuroso, dava sinais de lobo. Por isso, em vez de fala, usava outra linguagem: um assobio seco, estridente, instantâneo, que atirava com a mesma violência à cara dos interlocutores e às reses tresmalhadas. O apito, saído dos beiços com o ímpeto dum arremesso, entrava nos ouvidos como um punhal. Quase que fazia sangrar os tímpanos.
— E queres tu, com esse chamadoiro, que a Rosa te venha ao redil!
Queria, realmente. Quando passava por ela, comia-a com os olhos. Desgraçadamente, não sabia formular doutra maneira o desejo que o roía. E, por mais que a Mãe lhe preparasse o terreno, continuava solteiro, à míngua de expressão.
Pela manhã, erguia-se antes do próprio laboreiro. Mas nem pedia a bênção à pobre tia Etelvina, que considerava aquele filho um castigo de Deus, nem dava bons dias ao rebanho. Um assobio apenas. E com ele avisava a velha e os cordeiros de que eram horas. A infeliz vinha entregar-lhe a merenda, e o gado punha-se de perna alerta. De aí a nada, a procissão estava em andamento a caminho do Marão — o deserto do som. E sòzinho. De livre vontade, nunca emparceirava. A regra era ir sempre desacompanhado, mesmo que levasse o gado até aos confins da serra.
— Haverá pasto na Gralheira?
— Han…
Nada mais. Quem quisesse, fosse ver. Continuava distante, absorto, de beiços cosidos. Se acontecia encontrar-se com outros colegas na mesma encosta, e não conseguia arredar-se, ou lhe não convinha, deixava-se ficar sem abrir a boca, como se não desse sequer pela presença do intruso.
Assim sucedeu naquele dia. O Ruela apareceu, e os malatos que andava a engordar entraram de repelão pelo rebanho dele. Não tugiu nem mugiu. E nessa situação se manteve horas a fio, até que a desgraça se deu. Mesmo depois, no remate da tragédia, nada disse. A justificação do Ruela, respondeu com maior dureza no olhar. E, quando levantou a fo
ice, foi também em silêncio, como se fosse cumprir um voto.
— À salvação, que não lhe quis acertar!
Mas Ramiro estava perdido. A Mimosa era a mais bela ovelha de Arcã. E vê-la assim, estendida e morta, ia além das forças da sua compreensão.
— Acredita que o fiz sem querer!
O coitado do Ruela, ao tornar o gado, puxou demais à mão. O certo é que tal pedrada mandou à barriga da cordeira, que a desgraçada, prenha como uma vaca, abortou e morreu. Não foi logo na ocasião. Só passadas algumas horas é que se pôs a berrar, a berrar, num desespero que parecia de criatura. A berrar e a escoar-se em sangue.
Enquanto durou a agonia, Ramiro, apertava o cabo da foice, numa raiva açaimada. A própria vermelhidão que lhe alastrava nos olhos mostrava esse esforço de contensão. Infelizmente, deu-se o pior… O coração da churra, às tantas, parou de bater. E não teve mão no génio.
— Pela alma de quem lá tens, Ramiro!
O apelo, de ilimitada angústia, saíu com o fervor de uma oração do peito opresso do condenado. Mas a lâmina vinha no ar como um destino. E o grito de terror não encontrou eco. Vogou incerto pela serra além, e perdeu-se a seguir numa quebrada. A eternidade de tal instante tinha de ser assim, para que Ramiro estivesse certo consigo. A sua alma era muda como um túmulo. No instante em que a foice ia cair em cheio na cabeça do Ruela, os próprios montes pareceram siderados de espanto. Simplesmente, mais do que nunca, agora, a boca de Ramiro estava fechada. Larga e fina, lembrava um longo golpe cicatrizado. No rosto maciço, falar, só os olhos abertos. Inteiramente em sangue, apenas eles exprimiam uma determinação sem remédio, feroz, onde não havia lugar para nenhum perdão.
E, sobre a morte inocente daquele homem, apenas se ouviu, num instante fugidio, um assobio seco, agudo, a chamar o rebanho para o curral.
FARRUSCO
Dentro da poça do Lenteiro, há rãs. Naquela água coberta de agriões e de juncos moram centenas delas. Mas à volta, na sebe de marmeleiros, silva-macha e alecrim, vive Farrusco, o melro. Sabe-se isso desde que, em certo entardecer de Agosto, a Clara perguntou ao cuco que se pousara num pinheiro em frente: