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  Mas o cão só pensava na carniça. Quando voltou, trazia apenas o vício assanhado. E mostrou-lhe o carrinho.

  — Para isso, vai às da Vila…

  Tratou de enfaixar o ventre sob o saiote de lã, e foi vivendo. À noite, na cama, é que em vez de passar contas passava lágrimas… Como vivia só, ninguém, felizmente, dava fé das suas mágoas. E os meses iam correndo. Até que ao amanhecer daquele dia… Mas Roalde não havia de ter o gosto de lhe ouvir os gritos. Nem Roalde, nem o tinhoso do senhor Armindo. Não lhes dava essa glória. E ali se arrastava, quase morta, por ermos amaldiçoados, para que tudo continuasse entre ela e Deus. Meteria agora no segredo a Ludovina, a sua amiga de Ordonho, porque de todo não poderia governar-se sòzinha em semelhante aflição. Em casa dela teria o filho. E depois… Depois… Ah, mas a sede cortava-lhe o tempo ao meio! O futuro para um lado, vago, distante, irreal; o presente para o outro, urgente, positivo. Água! Tivesse ela à mão a fonte da Tenaria, um olho marinho que fartava os lameiros e ficava na mesma, água a jorros com que matar a sede da boca, do peito, da barriga, do corpo inteiro, e tudo seria simples…

  Mas água, só a que lhe inundou de repente as partes, e lhe escorria pelas coxas abaixo, quente, viscosa, pesada…

  Estremeceu. Poderia ainda continuar? Poderia ainda arrastar-se, cheia de febre, extenuada, em ferida, pela serra a cabo? E as dores cada vez mais apertadas, que a varavam de lado a lado, a princípio rastejantes, quase voluptuosas, e depois piores que facadas? Não, não podia continuar. Agora só atirar-se ao chão e, como no dia de S. Martinho, rolar sobre a terra em brasa, negra, saibrosa, eriçada de tocos carbonizados, sem palha centeia a quebrar a dureza das arestas, e sem o desavergonhado do Armindo a cantar-lhe loas ao ouvido…

  Aguilhoado de todos os lados, o corpo começou a torcer-se, aflito. E daí a pouco arqueava-se retesado, erguido nos calcanhares e nos cotovelos, a estalar de desespero. Dentro dele, através dele, um outro corpo estranho queria romper caminho. E, por mais que cedesse e alargasse, o inimigo mantinha-se insatisfeito, a reclamar maior espaço, a exigir as portas abertas de par em par. Sem a piedade dos intervalos de há pouco, as dores pareciam cadelas a mordê-la. De cada guinada vencida, nasciam outras guinadas, como rebentos por uma castinceira acima. E toda ela era um uivo de bicho crucificado.

  Alheia a tamanha angústia, a serra dormia a sesta, impassível. Indiferente ao tempo, que parara ou desusava sem lhe tocar a pele empedernida, fechara-se num egoísmo desumano. E quando Madalena, ao cabo de uma eternidade cega e raivosa, conseguiu finalmente sair do tronco de tortura, nada mudara. Os fragões sonhavam ainda.

  Suava em bica. Escorria das fontes à sola dos pés. O sol já não estava a pino. Ia caindo, agonizante, para os lados do Marão. A última dor morrera há um segundo, ou há horas, ou há semanas? Não sabia. Sabia, sim, que o sofrimento se apagara de vez e a deixara, como deixa o cortiço o enxame que parte.

  Nem um som, nem a presença duma aragem a quebrar a solidão que a cercava. Apenas num céu em fim de incêndio um mormaço cerrado.

  Abriu de todo os olhos turvos. Entre as pernas, numa poça de sangue, estava caído e morto o filho. Carne sem vida, vermelha e suja. O segredo dela e de Deus!…

  Exausta, deixou-se ficar prostrada, a saborear o alívio. As cancelas escancaradas fechavam-se lentamente… Por fim, cansou-se da própria imobilidade. Ergueu-se, então. E permaneceu assim alguns segundos a ouvir o silêncio, como a ver se lá do longe vinha resposta aos gritos desesperados que lançara. Nada! O mundo emudecera.

  Com fetos verdes limpou-se. Depois deixou cair aquele pano sujo no charco onde o filho dormia. O pé, sem ela querer, foi escavando e arrastando terra… Aos poucos, o seu segredo ia ficando sepultado… O pé tentava deslocar agora uma laje que estava ao lado. Era pesada de mais. E as mãos ajudaram… O sol, cada vez mais baixo, lançava os últimos avisos da sua luz. E os olhos de Madalena viram claro. Eram horas de regressar. Eram horas de voltar à aldeia e matar aquela sede sem fim na fonte fresca da Tenaria.

  MORGADO

  À ceia, o patrão, com cara de poucos amigos, recusara-lhe as festas desta maneira:

  — Deixa-te lá de brincadeiras e enche-me esse bandulho, que amanhã de madrugada, nem que chovam picaretas…

  Tal e qual. Meteu a viola no saco, claro, e atirou-se ao penso como pôde. Mas não sentia vontade. Tinha ainda no estômago os tojos que despontara à tarde no monte, e andava, sem saber porquê, de coração apertado. Além disso, aqueles modos do dono até parece que endureciam o feno. A gente também vive de boas palavras. E, verdade se diga, gostava do sujeito. Desde que ele, há seis anos, na feira dos vinte e três, o distinguira no meio dum regimento de azémolas e lhe dera uma palmada rija na anca, simpatizara com a sua figura atarracada, vermelha, a respirar saúde e bonomia.

  — Quanto custa o jerico?

  — Vinte libras.

  — Não é estampa para tanto dinheiro.

  Ai o alma do diabo a desfazer!

  — Vinte libras, nem menos um real.

  — Deixe o garrano por dezasseis, e já é caro como fogo…

  O cigano! Mas logo que o viu contar as dezassete moedas e pegar-lhe à arreata, cantou aleluias. Estava farto das bebedeiras do Preguiças. Cheio até às orelhas de subir a malvada ladeira da Queda a ouvir-lhe as asneiras de bebedolas. Mas era um macho! Aguentava no lombo quinze alqueires de pão como se fossem quinze alqueires de penas. Estribado nisso, o moleiro, com cardina ou sem ela, nas feiras, punha o preço em vinte libras. Resultado: ninguém o levava.

  — Você quer que lho carreguem de oiro!

  — É pegar ou largar.

  E tinha de regressar à loja, à maldita loja encostada ao moinho, ao lado da roda, sempre molhada e toldada de barulheira, e no dia seguinte trepar novamente a encosta, ao som da ladainha do costume.

  Zumba na barra da saia, ó Zé…

  Comida — carqueja, palha cevada estreme, e só lá de tempos a tempos uma pitada de grão. Vida negra! Por isso, quando viu o contrato fechado, sentiu-se redimido. E, apenas o novo dono se lhe escanchou em cima e seguiram pela estrada de Feitais, parecia-lhe que tinha asas, de tão feliz. À chegada, logo uma manta a resguardá-lo dum resfriado, e milhão branco e graúdo na manjedoura. Um céu aberto! Evidentemente que não havia só rosas naquela casa. Longe disso! O macho dum almocreve, sabe Deus… Mas, bem comido e bebido, um homem trabalha com alegria. De mais a mais se o patrão, às tantas, diz o seu dito engraçado, a animar:

  — Ah! Morgado, que me borras a pintura!

  Nem respondia. E assim que o arrocho dava o último apertão à cilha, largava à frente da récua, de pendão erguido.

  Desta vez, infelizmente, o caso era mais complicado. A ceia correra mal, iam sòzinhos, e os bons dias foram este consolo, pouco mais ou menos:

  — Vamos lá! Vamos lá, que são seis léguas de serra…

  Não gostava de semelhantes modos. Arrenegava de viagens mal principiadas. De maneira que recebeu a carga aperreado, e meteu-se ao caminho a malucar no pior.

  Tinham passado a última povoação do concelho e seguiam agora pela estrada velha de Arcã, sumidos na escuridão, varados de lado a lado por uma chuvinha gelada e teimosa. Mas o inverno corria daquela maneira: ou nevões de caiar a alma de tristeza, ou então um tempo assim, frio, húmido, cortado por lufadas ásperas de ventania. O patrão pegava-lhe à arreata. Ambos calados. Só os passos no saibro duro os revelavam ao ouvido atento das penedias, que escutavam das trevas.

  Não se lembrava de ter feito em toda a vida jornada que se parecesse. Nunca lhe acontecera, como hoje, ir com os cinco sentidos num alarme constante. Que raio de madrugada mais tenebrosa! Em vez de encher a alma de esperança, cobria-a de agoiro! E, sem querer, Morgado começou a sentir o corpo arrepiado e a desejar com desespero a luz da manhã.

  Ah, mas sabe Deus onde viria ainda o dia! Seis léguas de serra, se entendera bem. Pelos vistos, era tirada até ao vale de Vila Pouca. Daí a necessidade de aproveitarem as horas mortas da noite. E todo o pêlo se lhe crispava, à ideia de que faltava muito ainda para que, o sol alumiasse a terr
a e tirasse à caminhada o ar de pesadelo que a tornava infindável. É certo que a presença do dono o sossegava um pouco. Embora o não visse, por causa do comprimento da rabeira e da negrura cerrada, sabia que caminhava à frente, pronto para o que desse e viesse. E que raio poderia acontecer? Tropeçar? Não aguentar a carga? Se fosse apenas isso! Embora pèssimamente dormido e com a barriga vazia, nem as pernas lhe quebravam às primeiras, nem três sacos de centeio lhe faziam mossa. Os aborrecimentos que temia eram doutra natureza… Qualquer encontro desagradável, por exemplo…

  Nem de propósito! Ele a pensar no mal, e a ponta dum uivo tenebroso a furar-lhe os ouvidos.

  Um arrepio fundo percorreu-lhe o corpo. E, a seguir, todo ele ficou hirto, frio, pregado ao chão, num pânico mortal. Obra de um segundo, apenas. O justo tempo de a arreata ficar esticada entre a mão que a segurava e o argolão do cabresto. É que reagiu logo. Que diabo! Ia ali quem o defendesse… Não havia razão para um terror assim!

  Mas o dono, enigmàticamente, recuava. Aos poucos, encurtava os passos e chegava-se ao seu bafo. Mau!…

  Novo uivo, quase sobre eles, fendeu a noite. E ambos, agora como se fossem um só, de tão cingidos, se puseram a pisar o chão ao de leve, encolhidos no bioco da noite, com a respiração suspensa.

  Tolice pura, porque de nada lhes valia o disfarce. Morgado sabia-o bem. O instinto já o avisara de que tinham à perna alcateia esfaimada, capaz de farejar a presa a cem léguas de distância. De resto, os uivos eram de tal modo cerrados à volta, que só mesmo um milagre.

  Ah, sim, o coração não lhe vaticinava coisa boa do passeio. Há dias que trazia dentro do peito um pressentimento negro. Depois, a repugnância da ceia, o acordar sobressaltado, as horas soturnas do caminho, e, a coroar tudo, o silêncio enigmático e desacostumado do dono…

  Mas, precisamente, o dono erguia a voz do poço onde a sepultara:

  — Estamos perdidos, Morgado! Raios partam a minha pouca sorte!

  Não sabia que razão levava o almocreve a proceder daquela maneira. A que propósito dizia coisas á toa, berrava, batia com força as botas grossas no chão, como se quisesse sòzinho fazer barulho por trinta? Talvez tentasse amedrontar as feras, dando a entender que seguia ali um regimento de recoveiros com a respectiva caterva de bestas. Pois sim! Se pensava isso, enganava-se redondamente. Mais por adivinhar que por distinguir, Morgado antevira já uns olhos incendiados de fome a espreitá-los do coração da noite. E o patrão decerto os notara também, porque agora pusera-se a petiscar lume num seixo com a folha de aço da navalha. Como se os lobos tivessem medo das pobres faíscas que lhe saíam das mãos trémulas e garanhas ! Se apenas dispunha desse recurso, se não trazia no bolso um daqueles pistolos com que nas feiras, quando havia zaragata, os homens se matavam uns aos outros, estavam liquidados. Ali só mesmo um dos tais estoiros medonhos que pareciam trovões e desfaziam os ajuntamentos num suspiro. Ou isso, ou nada. Eram já três vultos que vislumbrava na escuridão, calados, mas resolutos.

  Ora, em vez de sacar do tal instrumento que, a trinta ou quarenta passos de distância mandava um cristão desta para melhor, o dono, depois do ridículo arraial de pirilampos, chegou-se a ele e, sem mesmo o fazer parar, cortou dum golpe as cordas que seguravam a carga. Os sacos de centeio caíram espapaçados no lajedo.

  Que raio de manobra era aquela? Pretenderia o patrão tentar a fuga? Quereria trepar-lhe ao lombo e abrir caminho pela serra fora? Nem mais. Mas uma triste ideia, aliás. Ele, Morgado, já não tinha as pernas da mocidade. Muito embora se considerasse ainda um animal capaz de cumprir o seu dever, não lhe pedissem semelhante bonito, depois de três horas de jornada, mal dormido e mal comido, e, ainda por cima, num caminho de pedras e com uma alcateia à ilharga. Tudo tem os seus limites. Além de que um macho não é bicho de correrias. Isso é lá com pilecas de ciganos.

  — É o único recurso…

  Seria. Mas punha-lhe dúvidas… Em todo o caso, não pensasse o amo que se negava. Não. Galopava à sobreposse, e assim havia de continuar até rebentar os peitos. Se discordava da resolução tomada, é porque realmente estava convencido de que nada se resolvia com panos quentes.

  — Anda, Morgado, que eles vêm aí!

  Que novidade! Outra coisa é que seria para admirar.

  Depois de o aliviar da carga, o dono saltara-lhe para cima, dera-lhe meia volta e metera-o a toda a brida a caminho de casa. Infelizmente, a alcateia fizera o mesmo. E ali iam à destilada também, quase ao lado, cinco lobos medonhos. Ah, o patrão não ter um trabuco dos tais! Assim, era a perdição.

  E a manhã sem romper! Levava os cascos em ferida, sentia o suor cair-lhe em fonte pelas virilhas, todo o corpo dizia bonda ao desatino de semelhante desfilada, e nem ao menos um sinal de alvorecer!

  Quanto mais corria, mais o vento lhe soprava nos ouvidos. Assobiava de tal modo, que parecia fazer troça daquela fuga desordenada.

  — Aguenta, Morgado! Não esmoreças, pelo amor de quem lá tens!

  Pois sim. O ponto era poder. Muito embora quisesse valer à aflição do dono, e à sua também, as pernas negavam-se. Por isso, pouco a pouco, foi abrandando o passo, a fazer sabe Deus que sacrifício para não cair redondo no chão.

  — Grande ladrão, que me atraiçoas!

  A paga que recebia! Não bastavam as chicotadas secas e contínuas que, com a soga da rabeira, lhe dava na cabeça, nas ancas e onde calhava, ainda um insulto daqueles! Mas chegara ao limite das forças. Batesse, espetasse mesmo a ponta da navalha, à laia de espora, fizesse o que entendesse… Fora até onde podia. Agora…

  — Excomungado! Desgraças-nos a ambos! Paciência. Quem dá o que tem…

  Um lobo saltara já do barranco para a estrada.

  — Minhas ricas dezassete libras…

  Não percebeu. Parara exausto, com o corpo em fogo e a cabeça tonta da nortada e das vergastadas que recebera. E não abrangeu logo o sentido verdadeiro de semelhantes palavras numa hora assim.

  — A estas digo-lhes adeus…

  Mas apenas o almocreve desmontou, e num relâmpago lhe tirou os aparelhos, acabou por compreender que o ia abandonar ali, esfalfado, coberto de suor, indefeso, à fome do inimigo. Salvava a vida com a vida dele… E lamentava as suas dezassete libras!

  E, afinal, a manhã vinha a romper!… Só quando viu o dono a caminhar pela serra fora de albarda às costas — não se envergonhar! — e sentiu os dentes do primeiro lobo cravados no pescoço, é que reparou que a luz do dia começara a desenhar as coisas e a dar significação a tudo.

  BAMBO

  O filho do caseiro novo é que lhe fez aquilo. Devagar, muito devagarinho, chegou-se a ele e — zás!: espetou-lhe a estaca nas costas. Depois ergueu-o e, de barriga para o ar, deixou-o ali suspenso, a espernear ao sol.

  O menino era mau de natureza. Furava os olhos dos passarinhos e cortava as pernas dos saltaricos quando podia. Mas, no caso de Bambo, portou-se assim porque a Joana Angélica lhe encheu primeiro os ouvidos. À noite, na fiada, tanto disse e ladrou dos sapos, do coxo e das feitiçarias, que o pequeno, pela manhã, mal deu com Bambo na horta, varou-o de lado a lado. E o pobre não teve outro remédio senão morrer trespassado na ponta do pau, a servir de espantalho às levandiscas. Com as chuvas, o sol e as geadas apodreceu por dentro, cheirou mal, secou e tornou-se num fole retesado. Uma sementeira mais, e desfez-se em pó.

  Bambo, o sapo! Criou-se ao deus-dará, como tudo o que é bom. Sem pressas, confiado no tempo e na fortuna, foi estendendo a língua pelos anos adiante até se fazer o homem que depois era, largo, grosso, atarracado. Trouxe logo do berço os olhos assim saídos e redondos, e aquelas pernas de trás em dobradiça, no mesmo instante um banco ou uma catapulta. E também a boca de pasmo, com que pelas noites adiante engolia a imensidade do céu, lhe veio de nascença aberta e vazia como um poço. Mal gatinhava ainda nas beiradas do charco onde nascera, já o corpo lhe pedia mundo, terras novas. E devagar, moroso, a suar o visco que o defendia de tudo, à chuva e ao vento, umas vezes a morrer de fome, outras entoirido de fartura, tanto andou, que não havia segundo da sua criação que tão profundamente conhecesse a veiga de V
ilarinho. Contudo, e não se sabe porquê, só aos vinte anos deu entrada na quinta da Castanheira que o tio Arruda trazia de renda. Pelos quinze de Agosto quando os milhões pareciam canaviais… Eram duas da madrugada. A aldeia, adormecida, sonhava. Caía um luar sereno, rarefeito, por sobre o casario negro. Ao longe, as matas do Infantado enquadravam o vale num abraço soturno. Nem a água da mina velha, que corria pela embelga fofa, fazia o mais pequeno barulho. Nada! Um silêncio de pedra! Tio Arruda recordava-se bem do dia, da hora e de todos os pormenores do acontecimento. Por sinal que atravessava nessa altura uma crise de desânimo. À ceia, duas batatas cozidas, apenas. Depois, um homem cansa-se de regar milhão a vida inteira. Uma existência triste, a sua… Sempre a trabalhar por conta dos outros… Ficara solteiro… Convivia pouco… Nisto, ao tornar a água — tchap! Foi a ver — e sai-lhe um sapo!

  Simplesmente, Bambo não era um anfíbio qualquer. Embora modesto na escala animal, tinha a sua personalidade. Precatado, discreto, negava-se a cair nos braços do primeiro que lhe desse a salvação.

  — Ora viva quem também anda acordado a estas horas!

  Não respondeu.

  — Na boa da conquista, está-se mesmo a ver!…

  Moita. Nunca dera troco a brincadeiras tolas. De resto, não andava às gatas, como o outro insinuava. Amores, só na primavera e na ribeira de Arcã.

  A desculpa é que tio Arruda desconhecia a vida do futuro amigo. Além de que dizia estas coisas por dizer, sem segundas intenções. Saudava apenas, num alvoroço justificado de solitário, aquela alma que lhe aparecia. Ah, mas Bambo não se entregava assim sem mais nem menos! Na maneira de fitar o interlocutor, no modo reservado como se foi afastando, mostrava claramente que não abria o coração antes de saber a quem.

  Contudo, tempos depois, quando se viram de novo no tendal de feijões, tudo correu melhor. Nem sombras da natural desconfiança do primeiro dia, nem nada que se assemelhasse ao retraimento antigo, com o salto por um pêlo a guardar as distâncias. Coisa muito diversa. Agora, Bambo, embora não correspondesse aos cumprimentos, mostrava-se tão urbano, dava tais provas de lhe ter caído bem semelhante encontro, que tio Arruda parecia ter corda na língua.