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Bichos Page 2


  Lá dentro frigiam carne. Ouvia bem o chorriscar da gordura na sertã. Dantes, seria o bastante para lhe correr a baba pelas barbelas abaixo. Agora, só a lembrança de torresmos dava-lhe volta ao estômago. Uma perfeita ruína! Estava podre por dentro e por fora… Raio de vida! E o malandro do galo a galar uma galinha! Tivesse ele procedido doutra maneira, quando o parvo era franganote, e já então cheio de proa, e não estaria agora o demo a fazer-lhe macaquices. Mas era feio um navarro dar um apertão num frango. Saiba um homem respeitar-se. Que grande dor de cabeça!… Que peso medonho na arca do peito!… E o corpo mole, sem acção…

  Aí vinha a patroa nova observar o andamento daquilo…

  Fechou os olhos. Sempre gostava de ouvir o que diria quando o visse como morto…

  Ela chegou-se e ficou silenciosa.

  Por uma fresta das pestanas espreitou-lhe a cara. Chorava. Desceu novamente as pálpebras, feliz.

  E à noite, quando o luar dava em cheio na telha vã da casa, e os montes de S. Domingos, lá longe, pareciam ter já saudade das suas patas seguras e delicadas, quando o cheiro da última perdiz se esvaíu dentro de si, quando o galo cantou a anunciar a manhã que vinha perto, quando a imagem do filho se lhe varreu do juízo, fechou duma vez os olhos e morreu.

  MAGO

  Mago respirou fundo. Abriu o nariz e encheu o peito de ar ou de luar, não podia saber ao certo, porque a noite era uma mistura de brisa e claridade. Mas fosse de frescura ou de luz a onda que bebera dum trago, de tal modo o inundou, que em todo o corpo lhe correu logo um frémito de vida nova. Esticou-se então por inteiro, firmado nas quatro patas, arqueou o lombo, e deixou-se ficar assim alguns instantes, só músculos, tendões e nervos, com os ossos a ranger de cabo a rabo. Arre, que não podia mais! Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Punha-o mole, sem acção, bambo e morno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha de acabar semelhante vergonha! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não faltava mais nada! De resto, ali tinha já a primeira demonstração: ela a ressonar sòzinha na cama fofa, enquanto ele enchia os pulmões de oxigénio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então, brandamente, desusara dos seus braços para o tapete e do tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem… Que diabo, sempre era a senhora D. Maria Sância, a que até um fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e outras é que chegara àquela linda situação…

  — Ouvi dizer que já nem sardinhas comes?!

  — Essa agora! É todos os dias…

  — E que nunca mais caçaste?!

  — Ainda esta manhã…

  Piadinhas do Lambão. É claro que os mimos da D. Sância lhe haviam deformado o gosto… Metia-lhe os petiscos ao focinho, tentava-se! E havia por onde escolher, de mais a mais… Quanto a ratos, que necessidade tinha de perder o tempo, debruçado três horas sobre um buraco, sem mexer sequer a menina dos olhos, à espera dum pobre diabo qualquer que ressonava lá no fundo? Deixá-los viver! As coisas são o que são. Em todo o caso, ainda comia a sua pescada crua e deitava honradamente a mão a uma ou outra borboleta branca, sem falar nas andorinhas novas e nos pardalecos que filava por desfastio na primavera. Que demónio! Mais, seria exagerar.

  — Mas que não sais de casa, sempre agarrado às saias…

  Na verdade, saía pouco. Outros tempos, outros hábitos. Banqueteava-se e ficava-se pelas almofadas… Digestões difíceis, vinha-lhe um migalho de sonolência… Às vezes tentava reagir. Mas o raio da velha, mal o via pôr o pé na soleira da porta, perdia a cabeça! Parecia uma sineta:

  — Mago! Mago! Bicho, bichinho!

  Regressava aos lençóis. Contrariado, evidentemente. Mas quê! Era o pão… O pãozinho da boca! Que remédio senão torcer caminho e, com as unhas discretamente recolhidas, continuar as carícias de algodão em rama no cachaço da dona…

  — E que deixaste a Faísca!…

  — Eu?!…

  — Que anda metida com o Zimbro… Pelo menos é o que consta. Que teve até cinco pequenos dele…

  — Meus! Muito meus! Do meu sangue!

  Pantominice. Um triste chanato na honra do convento… Paleio de chavelhudo manso… A ninhada pertencia inteirinha ao Zimbro. Até pela pinta se via. Todos com o mesmo olhinho remeloso do pai… Um parrana, realmente, embora o não confessasse. Os mimos da D. Sância tinham-no desgraçado. Ah, mas a coisa ia mudar de figura! Estava farto de ser desfeiteado. Ainda há bem pouco tempo… Chegara-se ao pé da mulher, disposto a impor a sua autoridade.

  — Ouve lá: disseram-me que mos andas a pôr para aí com todo o mundo?!

  E recebe esta pelas ventas:

  — Bem haja eu!

  — Bem hajas tu?!

  — Nunca guardei respeito a maricas!…

  Só a tiro! Mas a verdade é que a Faísca tinha razão. Lá de ano a ano é que vinha procurá-la, e isto de gado fêmeo quer assistência…

  Além disso, pesadão, desconsolado. E até esquecido dos ganidos dessas horas… Uma vergonha!

  — Aparece logo à noite, pelo Tinoco… Há reunião… E adeusinho…

  — Adeus, Lambão.

  Foi no quintal, à tarde, quando a D. Sância dormia a sesta. O antigo companheiro, empoleirado no muro, rondava a cozinha da vizinhança, onde assavam carapaus. Por acaso chegara à janela nesse momento, vira-o e fizera-lhe sinal. E o outro, de boa ou de má fé, abrira o saco. Mas há males que vêm por bem. Depois da conversa, pensara maduramente no caso, e ali estava agora disposto a ressuscitar daquela vida perdida em que o destino o metera.

  Sim, ali estava, a dois passos do Tinoco, o clube da gataria do bairro. Bem situado, com saída para dois quarteirões, fora fundado pelo maior valdevinos da geração: — o Hilário. Era um telhado corrido, quase plano, amplo, alto, mas de onde se podia cair de qualquer maneira numa aflição. Um achado. Como a casa servia de armazém, o Hilário viu de relance as condições do local. E logo no outro dia os beijos, as mordedelas, os arranhões e os queixumes do cio foram ali.

  Bons tempos esses! Namorava então a Boneca, uma gatinha borralheira de a gente se perder.

  — Ora viva!

  — Miiau…

  — Seja bem aparecida, a minha princesa!

  — Miiau…

  Mimo da cabeça aos pés. Mas um rebuçadinho! Depois enrodilhara-se com a Moira-Negra, um coiro velho, curtido e batido. Cada guincho que abria a noite!

  — Cala-te lá com isso, mulher!…

  Isso calava ela! Acabou por se aborrecer. Por fim veio a lambisgóia da Perricha… Uns trabalhos. Ciúmes, fraqueza, dores de cabeça, o diabo!

  — Matas-te, filho, arruínas-te…

  Palavras sensatas da mãe.

  — Muda de vida, homem! Essa excomungada leva-te à sepultura.

  Mas quê! O vício pode muito…

  Até que a mãe morreu de velhice e desgosto, a Perricha desapareceu das redondezas, e ele foi cair por acaso no quintal da D. Sância.

  — O bichinho está doente. Se calhar é fome…

  E a ternura da senhora nunca mais o largou. A princípio ainda tentou reagir; mas, por fim, o corpo, o miserável corpo, acostumou-se ao ripanço. A parva cuidava que era amor correspondido. Melhor fora! Amizade sincera não é com gatos. Simplesmente, quem brinca aos afogados, afoga-se. Com o andar do tempo, a moleza tomara conta dele… Quando reparou, estava perdido. Às vezes apetecia-lhe atirar com os aparelhos ao ar. Infelizmente, as vidas iam ruins. Virava-se um balde de restos, e não se aproveitava uma espinha. Que remédio, pois, senão contemporizar… Mas cara aposentadoria! Considerando bem, melhor fora que o estafermo da solteirona nunca lhe tivesse aparecido. Mais valia andar pelado e a cair de fome, e ser capaz de responder ao pé da letra aos sarcasmos que agora lhe atiravam.

  — Olha o Mago!… Olha o milionário!…

  O patife do Tare
co. Era de o derreter logo ali! A desgraça é que não podia passar da mansa indignação que o roía. Nem forças, nem coragem para mais. E, logo por azar, com o clube à cunha! Parecia de propósito. Raios partissem a D. Sância e mais quem lhe gabava as almofadas! Por causa delas pouco faltava para lhe cuspirem na cara!

  — Com que então de visita aos bairros pobres?! Obra de assistência aos desvalidos, não?…

  Até o bandido do Zimbro! Vejam lá! O engraçado! Não contente de lhe roubar a mulher, de lhe pregar um par deles do tamanho duma procissão, vinha ainda com provocações à vista de toda a gente. Ah, mas estava redondamente enganado, se cuidava que não recebia o troco devido!

  — O cavalheiro seja mais delicado…

  — Reparem nas falinhas dele… A tratar os amigos por cavalheiros!

  — Amigos?! Eu não tenho amigos da sua laia!

  — Pesam-lhe na testa, coitado!

  Desembestou. Cego da cabeça aos pés, atirou-se ao abismo. Infelizmente, as ensanchas do Zimbro eram outras. Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e fôlego. Contra tais armas, que podia a sanha dum pobre mortal, gordo e lustroso? Servir de bombo da festa… É que nem a primeira acertou! Ágil e musculado, e com a maleabilidade de uma cobra, o inimigo furtou-se à sua fúria, e ripostou a valer ao golpe esboçado. Depois, foi o bom e o bonito! A seguir a uma saraivada de investidas traiçoeiras, meia dúzia de navalhadas de liquidar um homem. Só visto! No fim da luta, quando já não podia mais e se confessou derrotado, sangrava e gemia tanto que até um polícia, em baixo, na rua estreita, se comoveu. O clube, esse, parecia doido de alegria. A Faísca rebolava-se no chão, de contente.

  Fugiu desvairado pelos telhados fora. A lua, cada vez mais branca lá no alto, olhava-o com desdém. A cidade, adormecida, parecia um cemitério sem fim. Da torre duma igreja saía um pio agoirento.

  Jogara naquele lance o resto da dignidade. E perdera. Dali por diante, seria apenas uma humilhação sem esperança. Ele, que tivera nas mãos possantes e nervosas o corpo fino e submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-Negra, ele, o companheiro de noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes! Proibido para o resto da existência de pensar sequer numa baforada da húmida frescura que agora lhe atravessava as ventas e lhe deixava camarinhas no bigode… Condenado para sempre ao bafio da maldita sala de visitas da D. Sânsia! Negra sorte! E tudo obra do coirão da velha… Se não fosse ela, em vez de ir ali esquadrilhado e a mancar da mão esquerda, estaria no Tinoco a soltar ganidos como os outros, depois de ter feito o Zimbro em pedaços… Assim, arrastava-se penosamente por aquele caminho de desespero, tal e qual um moribundo a despedir-se da vida… Miséria de destino! Vexado, vencido, retalhado no corpo e na alma… E tudo obra do estupor da santanária!…

  Vinha rompendo a manhã. Um sino ao longe deu seis horas. Abriam-se as primeiras janelas. Grandes laivos avermelhados anunciavam a chegada próxima do sol.

  Parou. Lambeu a pata doente e sacudiu-se, num arrepio. Uma lassidão profunda começava a invadi-lo. Maldita D. Sância!… Se nunca tivesse conhecido tal sujeita…

  Olha, olha, a enevoar-se-lhe a vista!… Queriam ver que ia desmaiar?!

  Encostou-se a uma chaminé, e ficou algum tempo sem dar acordo de si, a arfar penosamente. Até que uma onda de energia o trouxe de novo ao mundo. Arregalou os olhos. Estava melhor, felizmente! Já enxergava claro outra vez. Podia continuar.

  Em que trabalhos o metera o raio da velha! E louvar a Deus safar-se com vida da brincadeira… Coça Valente!… Por um triz que não se ficava… Muita resistência tinha ele ainda!

  A alguns metros apenas do jardim da casa, cuidou que tornava a desfalecer. E só então é que reparou: deixava um rasto de sangue por onde passava…

  Fez das tripas coração, e lá conseguiu equilibrar-se e chegar ao pequeno muro que vedava o paraíso da sua perdição. Saltava? Não saltava? Que infâmia, regressar aos mimos da D. Sância! Que nojo! Que ordinarice!

  Mas a que propósito vinham agora semelhantes escrúpulos e recriminações? Sim, a que propósito? Fartinho de saber que nem sequer lhe passara sèriamente pela cabeça a ideia de resolver o caso doutra maneira! Ao menos fosse sincero! De resto, que esforço concreto fizera para se libertar? Nenhum. Ainda não havia uma dúzia de horas, ouvira a voz do Lambão como um eco da própria consciência… E, afinal, ali estava outra vez! E viera de livre vontade… Ninguém o obrigara… Já roído de remorsos? Ora, ora! Outro fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara! Sim, voltara miseràvelmente… E à procura de quê? Da paz podre dum conforto castrador… Que abjecção! Que náusea!

  E, sem querer, sem poder aceitar a sua degradação, Mago entrou pelo postigo da cozinha e foi-se deitar entre os braços balofos da D. Sância.

  MADALENA

  Queimava. Um sol amarelo, denso, caía a pino sobre a nudez agreste da Serra Negra. As urzes torciam-se à beira do caminho, estorricadas. Parecia que o saibro duro do chão lançava baforadas de lume.

  Madalena arrastava-se a custo pelo íngreme carreiro cavado no granito, a tropeçar nos seixos britados por chancas e ferraduras milenárias. De vez em quando parava e, através dum postigo aberto na muralha das penedias, olhava o vale ao fundo, já muito longe, onde o corpo lhe pedira para ficar, à sombra de um castanheiro. O corpo. Porque a vontade fizera-a atravessar ligeira a frescura tentadora da veiga e meter-se animosa pela encosta acima. Tudo estava em chegar a Ordonho a tempo da sua hora. Por isso, era preciso reagir contra a própria natureza e andar para diante, custasse o que custasse.

  Galgada a custo a última rampa, Madalena encarou com terror a imensidade da montanha descarnada e hostil. Cada fragão de estremecer! Blocos desmedidos, redondos, maciços, acavalitados uns nos outros num equilíbrio quase irreal, ou então dispersos, solitários, parados e silenciosos pelo planalto além.

  Começara a sentir as dores de madrugada, vagas, distantes, quase gostosas. E, a esse primeiro aviso, resolvera partir. Já agora, por mais um pouco, era levar a cabo aquele timbre. Sabê-lo, até ali, só ela e Deus. Nem o maroto que lhe fizera o serviço desconfiava. Sempre fora senhora do seu nariz. Dera o tropeção, é certo, mas em seguida conseguira esconder a nódoa dos olhos do mundo — a nódoa maior que pode sujar uma mulher. E nem mesmo ele suspeitava sequer do que se passava. Dias depois da desfeita, quando se lhe chegou com olhinhos de carneiro, a querer repetir a façanha, pô-lo a andar, sem de longe ou de perto tocar em tal assunto.

  — Escusas de teimar: pega ou larga de vez. Se te não presto para uma coisa, também te não presto para outra… Resolve. Cães no rasto é que não quero!…

  Fez-se desentendido. Lá casamento, isso não era com ele. Tinha a mãe, tinha as sortes, tinha a vida encalacrada.

  — Pois então…

  E virou-lhe as costas. Servir-lhe apenas de estrumeira, consentir que se utilizasse dela como de uma reca, não. É verdade que a disfrutara por inteiro naquela maldita tarde… Paciência. O que é, comera por uma vez. Danado, ainda rosnou. A engolir as palavras, deu a entender, numa cava, que sim e mais que também. De pouco lhe valeu. Ela cortara de tal maneira o mal pela raiz, que ninguém acreditou nas alarvadas. Graças a essa firmeza, estava quase a chegar ao fim do fadário na consideração de toda a gente. Bastava agora ter coragem e ânimo nas pernas. Não. Nem Roalde, nem o badana se haviam de rir. Dera com o nariz no sedeiro, realmente. Na primeira quem quer cai… Mas tomara a peito manter-se pura daí em diante, e fizera vingar a sua. Nove meses como nove novenas! Preferia morrer, a ficar nas bocas do mundo. Com o correr do tempo, vira-se e desejara-se para manter o disfarce. Os últimos dias, então, pareceram-lhe anos. Felizmente, até esses vencera sem se denunciar. Fechou-se em casa, com a desculpa de andar adoentada, e aguardou que chegasse o momento de largar. E vinha o sol a nascer, este mesmo sol que agora lhe estonava a carne, metera pés a caminho. Nem viva alma, ao sair da aldeia! Roalde em peso mourejava nos lameiros e nas cortinhas da Tenaria. O Agosto corria criador. E cada qual gastava-se nos bens, a regar os milhões, as hortas e os batatais. Em Roalde, graças a Deus, àguinha — era
dar ao talhadoiro…

  Água!… Se ao menos tivesse um golinho dela naquele instante! Bastava-lhe molhar a boca… Já mal a sentia, de tão seca… Era um buraco encortiçado, por onde o ar passava em labaredas. Quase que lhe apetecia ferrar os dentes no toco dum carvalhiço, a ver se a humedecia.

  Chegada ao meio do planalto, as penedias metiam medo. Espaçadas e desconformes, pareciam almas penadas. Uma giesta miudinha, negra, torrada do calor, cobria de tristeza rasteira o descampado. Debaixo dos pés, o cascalho soltava risadas escarninhas.

  Estalava de secura. Ao tormento do cansaço e à crueldade das guinadas traiçoeiras que a anavalhavam quando menos esperava, juntara-se uma sede funda, grossa, que a reduzia inteira a uma fornalha de lume. Mas já o seu avô almocreve dizia:

  — Na Serra Negra, quem se quiser refrescar, tem de beber o suor…

  Simplesmente, o avô era homem e corria o mundo escanchado num macho, com a borracha de vinho no alforge. E ela, Madalena, não passava de uma pobre mulher, que ia ali naquele ermo excomungado, trespassadinha, já sem forças para mais, com o maldito do filho dentro da barriga aos coices. E tudo por causa das falinhas doces do Armindo, daquelas falinhas mansas, repenicadas, que a levaram à desgraça! Ah, magusto, magusto do S. Martinho! Caras lhe estavam as quatro castanhas assadas que aceitara na cardenha da Tapada. O malandro até jeropiga tinha ali à mão! E ela, a tola, comera, bebera e, por fim, rolara na palha aos berros. Mas de nada lhe valera. De todo o jeito, era sempre sobre o seu corpo o corpo rijo do estafermo, tenso, quente, angustiado. E cedera. Um minuto de fraqueza, ou de piedade concedida a tamanho desespero, e ao acordar — perdera o melhor. Mas pronto. Estava feito, estava feito. Levantou-se, sacudiu a saia, e não tugiu nem mugiu. Fez de conta que nada acontecera. Só que daí por diante passou a desviar-se das ocasiões, embora sempre à espera. Calada como um testamento, aguardou que o rapaz viesse falar-lhe a sério. Lá com palavrinhas de amor, não! Batesse a outra porta. E queria os banhos na igreja e o casamento em Janeiro. Sem lhe dizer, é claro, que ficara naquele estado…